quarta-feira, 12 de maio de 2010

Quero ver a festa bonita do Senhor Papa !



Veio de Moçarrica, ao pé de Santarém, às 7.30 da manhã para passar a noite na praça do Comércio. Sozinha - aos 84 anos



Está sentada numa das cadeiras de plástico branco que a organização reserva para os convidados de honra e para os celebrantes, chapéu, casaco, toalha de turco azul nos ombros, chapéu de chuva, canadiana e saco “cheio de bolos mais uma garrafa de água”.

Fome e sede nada - “Já me fartei de comer bolos, estou satisfeita” – nem frio nem cansaço, apesar de ter passado aqui o dia, no Terreiro do Paço, a marcar lugar. “Saí às 7 e meia de casa, apanhei a camioneta para Santarém e de lá o comboio para Santa Apolónia. Em Santa Apolónia perguntei como se vinha para aqui e disseram para apanhar o autocarro para o Cais do Sodré. E fui até lá.” Ri. Quando percebeu que se tinha enganado, veio a pé até à Praça do Comércio, “devagarinho, porque me doem os joelhos”.

Maria José Duarte Luís, 84 anos, de Moçarria, a 15 quilómetros de Santarém, veio só: os vizinhos são, garante, “todos hereges, não gostam de padres”, e nenhum dos dois filhos nem dos cinco netos a quis acompanhar. “Não queriam que eu viesse, veja lá. Disseram que podiam pisar-me, que era muita gente, perigoso.”

Mas não, não tem medo. Nem sequer de ficar aqui toda a noite, de não dormir. “Ainda se fosse um ermo, se não houvesse gente. Mas se me acontece alguma coisa há aqui polícias, hospitais, enfermeiros... Não acha?” O telemóvel ficou em casa – “Esqueci-me” – mas declina a oferta para ligar para os filhos. “Eles se quiserem vêm cá ter”. Nos olhos claros, a inclinação irónica, bem humorada, rima com o nome da terra – Moçarria virá do árabe muzarra, alegria – e faz cintilar um gume determinado.

A viver só há 34 anos, desde que os filhos foram à sua vida, e viúva desde 1969, Maria José trabalha ainda no campo, como fez a vida toda: “planto couves, sacho a horta”. À missa deixou de ir “há uns anos, porque é um bocado longe de onde eu vivo”, e confessar-se ainda há mais. “Não tenho pecados”: mais uma gargalhada. “A fé chega para nos salvar”, repete. “É uma fé desde garota, fui criada assim”. Rezar? “Todos os dias, o terço”. E o Papa? “É um grande homem, da classe mais rica, mais inteligente e com mais estudos, a classe católica: é a mais esperta, é ou não é?”

Às 11 da noite está frente ao palanque do coro, a ouvir os ensaios nocturnos, do lado direito da praça, junto ao ministério das Finanças, onde Bento XVI irá paramentar-se. Mas a seguir, avisa, irá para as cadeiras frente ao palco, no extremo sul da praça, com o rio em frente. À meia noite lá está, na zona reservada aos dignitários da Igreja Católica, ao lado daquela onde ficarão os convidados do “protocolo de estado”, incluindo o Presidente da República. Sem fazer perguntas nem pedir licença, Maria José senta-se no lugar que escolheu na praça maior do seu país, à espera de poder ver aquilo por que tanto andou: “A festa bonita do senhor papa”.

Elementos da organização passam para cá e para lá, mas nenhum se atreve a dizer-lhe que ali não poderá ficar; quando à tarde começarem a sentar pessoas ela será conduzida para trás das baias que separam os VIP do povo, onde não há cadeiras, nem sequer uma zona para pessoas com dificuldades de locomoção. Mas ainda é cedo: falta a noite toda dela na praça vazia, a praça onde imagina "coisas bonitas", a praça onde, seguindo o apelo do actual Papa, ela não tem medo. Medo nenhum, só vontade de ver, de estar, de conhecer, de se encantar. E de alegria. "Estou habituada a dormir pouco, certas noites estou mais a ver TV que estou a dormir. Gosto de tudo quanto lá põem. Acho graça a tudo. Isto é para a televisão, não é? Gostava que fosse a televisão. Para os meus filhos se rirem."

( In Diário Noticias -Portugal - Net )

3 comentários:

  1. Bela crónica esta do D.N. A simplicidade, a humildade e a fé de alguém que não tem medo. Marie

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  2. Naturalmente que temos de respeitar estas pessoas que no mais intimo do seu ser acreditam
    que num dia 13 de Maio há muitos anos Nossa Senhora terá vindo transmitir uma mensagem a todos os seres humanos. Mas cada um de nós tem a liberdade de acreditar ou não neste facto. Santos

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  3. Bem escrita esta crónica da jornalista do D.N.
    que analisa a fé de alguém que parte da sua casa apesar da sua avançada idade, para enfrentar uma multidão , sem receio porque vai ao encontro de algo em que acredita. Estela

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