sexta-feira, 12 de junho de 2009

LIÇÕES DE SARAMAGO





Também lhe chamam Corpus Christi e é “dia de preceito” para os católicos, além de feriado oficial. Todos os fiéis deverão ir à missa (ser “dia de preceito” a tal obriga) para dar testemunho da presença real e substancial de Cristo na hóstia. E nada de pôr-se com dúvidas sobre a divina presença na pastilha ázima como sucedeu a um sacerdote chamado Pedro de Praga, no século XIII, não seja que se repita o tremebundo milagre de ver a hóstia transformar-se em carne e sangue, não simbólicos, mas autênticos, e ter de levar outra vez a sanguinolenta prova em solene procissão para a catedral de Oviedo, como complacentemente no-lo explica Wikipedia, fonte a que neste difícil transe tive de recorrer. O mundo era interessantíssimo naquele tempo. Hoje, o milagre de recuperar a economia e a banca passa por imprimir milhões de dólares a uma velocidade de vertigem e pô-los a circular, preenchendo assim um vazio com outro vazio, ou, por palavras menos arriscadas, substituindo a ausência de valor por um valor meramente suposto que só durará o que durar o consenso que o admitiu.

Mas não era da crise que eu queria escrever. Em todo o caso, como já se vai ver, a menção ao Corpo de Deus não foi gratuita nem simples pretexto para fáceis heresias, como costumam ser as minhas, segundo canónicas e abalizadas opiniões. Há alguns dias, no 28 de Maio para ser mais exacto, um boliviano de 33 anos, de nome Fraans Rilles, emigrante “sem papéis” e sem contrato, que trabalhava numa padaria em Gandia (Espanha), foi vítima de grave acidente, uma máquina de amassar cortou-lhe o braço esquerdo. É certo que os patrões tiveram a caridade de o levar ao hospital, mas deixaram-no a 200 metros da porta com uma recomendação: “Se te perguntam, não digas nada da empresa”. Como seria de esperar, os médicos pediram o braço para tentar reimplantá-lo, mas tiveram de desistir da ideia perante o mau estado em que se encontrava. Tinham-no atirado ao lixo.

Afinal, eu não queria escrever sobre o Corpo de Deus. Como é meu costume, uma coisa levou a outra, mas era do Corpo do Homem que eu pretendia realmente falar, esse corpo que, desde a primeira manhã dos tempos, vem sendo maltratado, torturado, despedaçado, humilhado e ofendido na sua mais elementar dignidade física, um corpo a quem agora foi arrancado um braço e a quem foi ordenado que se calasse para não prejudicar a empresa. Espero que os fiéis que hoje acorreram à missa e leram a notícia no jornal tenham tido um pensamento para a carne sofredora e o sangue derramado deste homem. Não peço que o ponham num altar. Só peço que pensem nele e em tantos como ele. Diz-se que todos somos filhos de Deus. Não é verdade, mas com este falsidade se consolam muitos. Deus não valeu a Fraans Rilles, vítima da máquina de amassar pão e da crueldade da gente sem escrúpulos que explorava a sua força de trabalho. Assim vai o mundo e não haverá outro.

(IN CADERNO DE SARAMAGO - Imagem: Net)

4 comentários:

  1. Belo texto. É Saramago. Excelente apesar de haver coisas nele que não gosto. Gonçalves

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  2. Gostei sinceramente. Venham outros de vez enquando. Milla

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  3. Um texto como tantos outros do grande Saramago.
    Linda

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  4. Só,... deslumbrar-nos com Saramago n'este seu belo e excelente texto,... é curto; incorremos na falta de acusar o 'Sistema' que tramou Fraans Rilles... ou, o belo texto ficará pelo caminho...


    ...filhos de Deus! enfim...até Jesus [o Filho Homem] no seu desespero terá dito:

    "Pai, pai, porque me abandonaste?..."

    E é assim que o 'mundo vai, sem haver outro'...

    Lá está! Milagres,... hoje? talvez negócios tipo o do Cristiano Ronaldo!... e, [Crise!?] só 'por uma razão': o "mundo já foi interessantíssimo" mas hoje, já não o é, parece!... (mea culpa?).

    Bem podem ir à missa de 'Corpus Christi', ou outros 'preceitos religiosos'...

    Por mim, acho processos 'pouco católicos', brandos demais, para a dureza destes dias que constituem o nosso "mundo desinteressantíssimo".

    Há que fazer algo!

    Talvez, como escrever é lutar, ir para a frente
    exigindo sem calar... porque água mole em pedra dura... no mínimo tem que resultar e, não ficar só, a elogiar o que «os outros» escreveram...

    Isto, faz [fará] parte da «Missão»...

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